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quarta-feira, abril 19, 2006

Prefácio Marcha Interrompida

Caro Leitor
Se você é daqueles que se impressionam com as coisas que lê, fica indignado, chora, perde o sono, xinga, sente a informação como um chute na boca do estômago – então é melhor não ler este livro. Pedro César Batista não economizou na descrição dos detalhes, na construção paulatina de uma história que vai nos aproximando de seres humanos concretos, de carne e osso. No fim do livro, você vai se sentir muito mal.
Não há no livro generalizações sociológicas. Não há leis gerais pomposas que, a pretexto de desvendar os mecanismos históricos do massacre de Eldorado dos Carajás, na verdade apagam o ser humano e entorpecem a consciência. Não há a quem recorrer, não há “luz no fim do túnel”, não há a promessa de um “amanhã feliz”. Comecemos pelo fim:
“Os que passam nos carros fazem o sinal da cruz. Os motoristas podem ver, devido à luz dos faróis, pedaços de massa encefálica e de carne desmantelada sobre o asfalto ensangüentado. Eles não tem como desviar. São obrigados a passar por cima dessa lama de destroços humanos.”
O próprio título do livro já é uma denúncia da condição atroz daqueles lavradores: poderá haver algo mais terrível do que uma marcha interrompida, quando o que se espera é que o final da marcha traga a paz?
Tive a oportunidade de visitar o assentamento que abriga a maioria dos que participaram da marcha interrompida, situado na região de Eldorado. É o que apresenta, entre todos os assentamentos organizados pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), os maiores índices de suicídios, de viciados em drogas, de violência doméstica e de casos embriaguez. Não é por acaso. Eles foram vítimas de uma operação implacável e covarde de guerra. Os sobreviventes são apenas isso: sobreviventes.
Pedro César Batista abre de novo a chaga, cumpridos dez anos do massacre. Mas ele não cai na tentação de idealizar os marchantes. Ao contrário. Apresenta cada um deles em sua dimensão humana – Antônio da Maria, Oziel, Mônica e tantos outros -, com todas as contradições inerentes a qualquer um de nós. Compartilhamos os seus medos e as suas alegrias.
Ficamos estarrecidos com a selvagem tortura que leva Oziel à morte. Somos subitamente transportados, neste momento, do sul do Pará para o Estádio Nacional de Santiago do Chile, onde, em 1973, os algozes de Pinochet usaram métodos bem semelhantes para humilhar e assassinar gente como o eterno Victor Jara.
Ficamos chocados ao saber que entre os marchantes há informantes da polícia: “O que esses caminhantes não imaginam é que entre eles há dois infiltrados. Crêem que todos os participantes são pessoas comprometidas com a conquista de terras para produzirem o seu sustento. Mas, há dois componentes que não têm o mesmo ideal e acreditam em outros valores e têm outros interesses e compromissos: Hermenegildo e Edimar.”
Ratos. Há ratos entre os que marcham. Ratos que sabem onde tudo vai acabar. E isso nos enche de fúria. “Profissionais experientes, dissimulados e frios”, descreve Batista, ao explicar como fizeram para ganhar a confiança dos demais, e como faziam para entregar aos superiores as suas posições.
Assim a trama vai sendo construída, até chegar ao desfecho final. É preciso ter muito estômago para suportar tamanha ignomínia. Pedro César Batista faz um relato forte, pungente, cru. Resta apenas esperar que a indignação causada pelo relato multiplique a vontade de acabar com os ratos, grandes e pequenos, que infestam o país.

José Abex Jr. – jornalista e professor da PUC/SP




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